Introdução
Nos últimos dias, as redes sociais foram palco de intenso debate após
declarações do governador da Zambézia, Pio Matos, que se manifestou contra a
continuação do Ensino Bilíngue nas escolas da Província. Segundo as suas
palavras, “na escola é para aprender
português” e “essas coisas de línguas
locais aprendem-se na comunidade”.
As reacções foram imediatas: professores, linguistas e activistas da educação
consideraram o discurso um retrocesso, um equívoco grave e uma afronta à
própria política educativa aprovada pelo Governo de Moçambique.
Mas afinal, o que está em causa quando se fala de Ensino Bilíngue (EB)? Por
que ele é tão importante e por que as palavras do governador soaram tão
preocupantes?
O que é o Ensino
Bilíngue e por que existe
Para o caso de Moçambique, o EB é uma modalidade de educação que combina a
Língua Materna da criança (Língua Local) e o Português
como línguas de ensino (Língua Segunda). Nos primeiros anos de escolaridade, o
aluno aprende a ler, escrever e compreender na língua que domina, isto é, a
língua que ouve e fala todos os dias. À medida que avança, o português vai
sendo introduzido de forma progressiva até se tornar a principal língua de
ensino.
Não se trata de rejeitar o português, mas de criar uma base sólida
de aprendizagem. Estudos mostram que a criança aprende melhor quando
começa numa língua que conhece e depois transfere essas habilidades para o
português com mais facilidade.
Em termos simples: ninguém pode aprender bem numa língua que não
entende.
A realidade
linguística de Moçambique
Moçambique é um país riquíssimo em diversidade linguística, mais de 20
línguas nacionais convivem com o português, que é a língua oficial. No
entanto, a maioria das crianças moçambicanas não tem o português como
língua materna. Quando chegam à escola e encontram um sistema que só
fala português, muitas delas sentem-se perdidas, excluídas e incapazes de
acompanhar as aulas.
É por isso que, em 2003, o Governo introduziu o ensino bilíngue, hoje
regulado pela Estratégia Nacional de Expansão do Ensino Bilíngue
2020–2029. Essa política foi aprovada pela Assembleia da República e
implementada de forma gradual em zonas linguisticamente homogéneas, ou seja,
onde todos falam a mesma língua local.
Os resultados
falam por si
Experiências em várias províncias de Moçambique, incluindo a própria
Zambézia, mostraram que o ensino bilíngue melhora a compreensão, a
leitura e a permanência escolar.
O projecto Vamos Ler! (Let’s Read!), por exemplo, mostrou que as
crianças que começaram a estudar na sua língua materna atingiram níveis
de leitura sete vezes superiores aos das turmas monolíngues em
português. Esses dados são claros: o ensino bilíngue não é obstáculo ao
português, é o caminho mais rápido e eficaz para o aprender.
Além disso, o EB ajuda as crianças a sentirem orgulho na sua língua e
cultura. A escola deixa de ser um lugar de exclusão e torna-se um espaço onde o
aluno se reconhece, participa e aprende com confiança.
O Presidente da República de Moçambique, Daniel
Chapo defende o uso das línguas locais em Moçambique como uma forma essencial
de preservar a cultura e a identidade nacional.
Ele enfatiza que a cultura, incluindo as línguas locais, é um pilar da
identidade, da reconciliação e do desenvolvimento do país. Além disso, ele
destaca o papel crucial da juventude na revitalização cultural, utilizando
ferramentas modernas para reescrever a história e a identidade moçambicana.
Por que o
discurso do governador preocupa
As palavras de um líder político têm peso. Quando um governador diz
publicamente que “ninguém quer essa coisa
de ensino bilíngue”, transmite uma mensagem perigosa: a de que as
línguas locais não têm valor. Essa visão contradiz não só a política
nacional, mas também compromissos internacionais que Moçambique assumiu, como a
recomendação da UNESCO, que desde 1951 defende o direito das
crianças a aprenderem na língua que conhecem melhor.
A
Constituição da República de Moçambique estabelece o português como a única
língua oficial, mas também garante que o Estado valoriza e promove as línguas
nacionais. O Artigo 9 da
Constituição considera as línguas nacionais como património cultural e
educacional, incentivando o seu desenvolvimento e uso crescente. O uso do
português é obrigatório na educação e nas instituições públicas, enquanto as
línguas nacionais ganham espaço, por exemplo, através da educação bilingue.
Mais grave ainda é o impacto imediato nas escolas. Muitos directores e
professores, ao ouvirem o governador, podem sentir-se pressionados a
interromper programas bilíngues já em curso, enfraquecendo anos de trabalho,
formação e investimento público.
Ensino bilíngue
não é moda, é justiça
O EB não é uma experiência passageira nem um capricho de
linguistas. É uma política de inclusão e justiça social. Ele
garante que a criança da Zambézia, do Niassa ou de Inhambane tenha as mesmas
oportunidades de aprender e vencer que a criança de Maputo.
Negar isso é perpetuar desigualdades, é aceitar que milhares de alunos
continuem a reprovar ou abandonar a escola apenas porque não dominam o
português aos seis anos de idade.
Como país, não podemos falar de “educação de qualidade” se ela não for
compreendida pelas crianças.
O papel dos
líderes e da comunidade
Espera-se dos governadores e decisores provinciais liderança
informada, capaz de apoiar políticas educativas que comprovadamente
funcionam. Antes de rejeitar o EB, é fundamental compreender a sua filosofia,
os seus resultados e o seu impacto nas comunidades.
A escola faz parte da comunidade, não está fora dela. E quando a escola fala a
língua da comunidade, a educação ganha vida.
Cabe também aos professores, académicos, pais e jornalistas continuar a
esclarecer e debater o tema de forma aberta, com dados e exemplos concretos. O
EB precisa ser compreendido e defendido, não ridicularizado.
Conclusão
Moçambique não pode retroceder no caminho da inclusão linguística e
educativa. O ensino bilíngue é uma conquista que deve ser consolidada,
aperfeiçoada e expandida, não desvalorizada por declarações infelizes.
As nossas línguas locais não são obstáculo ao progresso; são ponte para o conhecimento e para a verdadeira unidade nacional. Ensinar na língua da criança é respeitar quem ela é. E uma escola que respeita a língua da criança, ensina-a a respeitar o país inteiro.
Bibliografia
Constituição da República de
Moçambique. (2004, rev. 2018). Boletim da
República. Maputo:
Imprensa Nacional.
Creative Associates International. (2021). Vamos Ler! (Let’s Read!) Mozambique
Project Report.
Washington, D.C.: Creative Associates International.
ecoI.net. (2021). Mozambique: Education – Bilingual Education
Programme Data and Reports. Retrieved from https://www.ecoi.net/
Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano
(MINEDH). (2020). Estratégia Nacional de Expansão do Ensino Bilíngue
2020–2029. Maputo: Governo de Moçambique.
UNESCO. (1951). The Use of Vernacular Languages in Education.
Paris: UNESCO.
UNESCO. (2011). Bilingual Education in Mozambique. Retrieved
from https://unesdoc.unesco.org/
University of Pretoria. (2019). Language Policy and Practice in Multilingual
Contexts: The Case of Mozambique.
Pretoria: UP Press.
University of Wisconsin-Madison.
(2004). Bilingual Education in Mozambique:
Lessons from Pilot Programs. Madison: African Studies Collection,
University of Wisconsin.
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