terça-feira, 4 de novembro de 2025

Ensino Bilíngue: Uma Ponte para a Inclusão e o Futuro de Moçambique

Introdução

Nos últimos dias, as redes sociais foram palco de intenso debate após declarações do governador da Zambézia, Pio Matos, que se manifestou contra a continuação do Ensino Bilíngue nas escolas da Província. Segundo as suas palavras, “na escola é para aprender português” e “essas coisas de línguas locais aprendem-se na comunidade”.
As reacções foram imediatas: professores, linguistas e activistas da educação consideraram o discurso um retrocesso, um equívoco grave e uma afronta à própria política educativa aprovada pelo Governo de Moçambique.

Mas afinal, o que está em causa quando se fala de Ensino Bilíngue (EB)? Por que ele é tão importante e por que as palavras do governador soaram tão preocupantes?

 

O que é o Ensino Bilíngue e por que existe

Para o caso de Moçambique, o EB é uma modalidade de educação que combina a Língua Materna da criança (Língua Local) e o Português como línguas de ensino (Língua Segunda). Nos primeiros anos de escolaridade, o aluno aprende a ler, escrever e compreender na língua que domina, isto é, a língua que ouve e fala todos os dias. À medida que avança, o português vai sendo introduzido de forma progressiva até se tornar a principal língua de ensino.

Não se trata de rejeitar o português, mas de criar uma base sólida de aprendizagem. Estudos mostram que a criança aprende melhor quando começa numa língua que conhece e depois transfere essas habilidades para o português com mais facilidade.

Em termos simples: ninguém pode aprender bem numa língua que não entende.

 

A realidade linguística de Moçambique

Moçambique é um país riquíssimo em diversidade linguística, mais de 20 línguas nacionais convivem com o português, que é a língua oficial. No entanto, a maioria das crianças moçambicanas não tem o português como língua materna. Quando chegam à escola e encontram um sistema que só fala português, muitas delas sentem-se perdidas, excluídas e incapazes de acompanhar as aulas.

É por isso que, em 2003, o Governo introduziu o ensino bilíngue, hoje regulado pela Estratégia Nacional de Expansão do Ensino Bilíngue 2020–2029. Essa política foi aprovada pela Assembleia da República e implementada de forma gradual em zonas linguisticamente homogéneas, ou seja, onde todos falam a mesma língua local.

 

Os resultados falam por si

Experiências em várias províncias de Moçambique, incluindo a própria Zambézia, mostraram que o ensino bilíngue melhora a compreensão, a leitura e a permanência escolar.
O projecto Vamos Ler! (Let’s Read!), por exemplo, mostrou que as crianças que começaram a estudar na sua língua materna atingiram níveis de leitura sete vezes superiores aos das turmas monolíngues em português. Esses dados são claros: o ensino bilíngue não é obstáculo ao português, é o caminho mais rápido e eficaz para o aprender.

Além disso, o EB ajuda as crianças a sentirem orgulho na sua língua e cultura. A escola deixa de ser um lugar de exclusão e torna-se um espaço onde o aluno se reconhece, participa e aprende com confiança.

O Presidente da República de Moçambique, Daniel Chapo defende o uso das línguas locais em Moçambique como uma forma essencial de preservar a cultura e a identidade nacional. Ele enfatiza que a cultura, incluindo as línguas locais, é um pilar da identidade, da reconciliação e do desenvolvimento do país. Além disso, ele destaca o papel crucial da juventude na revitalização cultural, utilizando ferramentas modernas para reescrever a história e a identidade moçambicana. 

 

Por que o discurso do governador preocupa

As palavras de um líder político têm peso. Quando um governador diz publicamente que “ninguém quer essa coisa de ensino bilíngue”, transmite uma mensagem perigosa: a de que as línguas locais não têm valor. Essa visão contradiz não só a política nacional, mas também compromissos internacionais que Moçambique assumiu, como a recomendação da UNESCO, que desde 1951 defende o direito das crianças a aprenderem na língua que conhecem melhor.

A Constituição da República de Moçambique estabelece o português como a única língua oficial, mas também garante que o Estado valoriza e promove as línguas nacionais. O Artigo 9 da Constituição considera as línguas nacionais como património cultural e educacional, incentivando o seu desenvolvimento e uso crescente. O uso do português é obrigatório na educação e nas instituições públicas, enquanto as línguas nacionais ganham espaço, por exemplo, através da educação bilingue. 

Mais grave ainda é o impacto imediato nas escolas. Muitos directores e professores, ao ouvirem o governador, podem sentir-se pressionados a interromper programas bilíngues já em curso, enfraquecendo anos de trabalho, formação e investimento público.


Ensino bilíngue não é moda, é justiça

O EB não é uma experiência passageira nem um capricho de linguistas. É uma política de inclusão e justiça social. Ele garante que a criança da Zambézia, do Niassa ou de Inhambane tenha as mesmas oportunidades de aprender e vencer que a criança de Maputo.
Negar isso é perpetuar desigualdades, é aceitar que milhares de alunos continuem a reprovar ou abandonar a escola apenas porque não dominam o português aos seis anos de idade.

Como país, não podemos falar de “educação de qualidade” se ela não for compreendida pelas crianças.

 

O papel dos líderes e da comunidade

Espera-se dos governadores e decisores provinciais liderança informada, capaz de apoiar políticas educativas que comprovadamente funcionam. Antes de rejeitar o EB, é fundamental compreender a sua filosofia, os seus resultados e o seu impacto nas comunidades.
A escola faz parte da comunidade, não está fora dela. E quando a escola fala a língua da comunidade, a educação ganha vida.

Cabe também aos professores, académicos, pais e jornalistas continuar a esclarecer e debater o tema de forma aberta, com dados e exemplos concretos. O EB precisa ser compreendido e defendido, não ridicularizado.

 

Conclusão

Moçambique não pode retroceder no caminho da inclusão linguística e educativa. O ensino bilíngue é uma conquista que deve ser consolidada, aperfeiçoada e expandida, não desvalorizada por declarações infelizes.

As nossas línguas locais não são obstáculo ao progresso; são ponte para o conhecimento e para a verdadeira unidade nacional. Ensinar na língua da criança é respeitar quem ela é. E uma escola que respeita a língua da criança, ensina-a a respeitar o país inteiro.


Bibliografia

Constituição da República de Moçambique. (2004, rev. 2018). Boletim da RepúblicaMaputo: Imprensa Nacional.

Creative Associates International. (2021). Vamos Ler! (Let’s Read!) Mozambique Project Report. Washington, D.C.: Creative Associates International.

ecoI.net. (2021). Mozambique: Education – Bilingual Education Programme Data and Reports. Retrieved from https://www.ecoi.net/

Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH). (2020). Estratégia Nacional de Expansão do Ensino Bilíngue 2020–2029. Maputo: Governo de Moçambique.

UNESCO. (1951). The Use of Vernacular Languages in Education. Paris: UNESCO.

UNESCO. (2011). Bilingual Education in Mozambique. Retrieved from https://unesdoc.unesco.org/

University of Pretoria. (2019). Language Policy and Practice in Multilingual Contexts: The Case of Mozambique. Pretoria: UP Press.

University of Wisconsin-Madison. (2004). Bilingual Education in Mozambique: Lessons from Pilot Programs. Madison: African Studies Collection, University of Wisconsin.

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